Portugal


Uma esponja contra a sida que veio de uma ilha submersa do Atlântico

Teresa Firmino

3 de Dezembro 2006, publico.pt, Portugal - Era terra firme, há 18 mil anos. Passou a ilha afundada, há 14 mil, com o fim da última grande glaciação. O banco de Gorringe, entre a costa sul de Portugal e a Madeira, desperta tanto interesse científico que uma equipa de biólogos se aventurou até lá. Mergulharam até bater no fundo, para ver a vida que há ali e captar imagens inesquecíveis de cardumes de lírios a rodopiá-los

No convés do Creoula, abstraídos do azul que rodeia por completo o navio, Joana Xavier e Gonçalo Calado concentram o olhar no que parece um pão queimado por cima. Sabem bem o que é e decidem cortar uma talhada grossa para espreitar o interior. Até parece pão, com um rendilhado creme de buracos, mas uma tal refeição, ainda por cima cheia de bichos, seria indigesta.

Acabam de trazer do fundo do mar uma esponja, que é especial: tem propriedades contra o vírus da sida, descobertas por cientistas portugueses há alguns anos. Com uma pinça na mão, ela troca impressões com ele, de bióloga para biólogo, em pé, ora balançando para cá, ora para lá no convés, ainda com os fatos de mergulho, enquanto se entretém a tirar os bichos da esponja fatiada. "Olha lá esta coisinha mais pequena. Olha mais aqui...", aponta a cientista portuguesa, a doutorar-se na Universidade de Amesterdão (Holanda) sobre esponjas marinhas dos Açores e do nordeste atlântico.

"Vamos cortar isto tudo às fatias!", atira de rompante Gonçalo Calado, da Universidade Lusófona, em Lisboa. Curiosas, duas alunas desta universidade, Mónica Albuquerque e Inês Tojeira, espreitam. "Parece pão saloio", brincam. "É mais ou menos pão de torresmos", diz-lhes Gonçalo Calado.

Uma guerra bem-vinda

"Estas fatias têm de se meter em sacos de plásticos para congelar, para irem para o grupo de química da professora Madalena Humanes", informa Joana Xavier, não sem antes contar a história de um professor francês a quem um dia os alunos fizeram mesmo uma sandes com um bocado de esponja. "Comeu aquilo e foi parar ao hospital. As esponjas fixam-se ao substrato, por isso têm uma gama de compostos químicos para se defenderem de predadores. Como não se mexem, não têm boca nem dentes, fazem guerra química. Esses compostos podem ser tóxicos, para nós e outros animais." (Apesar de tudo, o francês resistiu a estes animais que, quando filtram a água, se defendem de bactérias, fungos e vírus com armas químicas). Por fazerem guerra química, as esponjas interessam aos químicos. Foi o grupo de Madalena Humanes, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que descobriu a actividade contra o vírus da sida nesta esponja, a Erylus discophorus, por volta de 2000. Continuam a investigá-la, por isso necessitam sempre de mais material. Joana Xavier colaborou uns meses com o grupo, em 2003, a apanhar e classificar esponjas, por isso ficou de telefonar caso encontrasse a Erylus discophorus.

Foi descrita em 1862, por Oscar Schmidt. Vive na costa portuguesa, no nordeste do Atlântico, no Mediterrâneo e na Madeira e nos Açores; e sabe-se que se reproduz de forma sexuada, com fertilização externa (lança o esperma e os ovos para a água). No entanto, nunca tinha sido apanhada ali, no banco de Gorringe, a meio caminho para a Madeira, até porque poucos biólogos lá mergulharam. No meio do nada, só do azul.

Gettysburg e Ormonde na mira

Está-se a 150 milhas náuticas a sudoeste do cabo de São Vicente, na zona de um dos cumes do Gorringe - o Gettysburg, onde o fundo do mar pode estar a menos de 40 metros. Razão por que os biólogos, apesar de ser fundo, ainda conseguem mergulhar aí com escafandro autónomo, já que à volta do banco se atingem os 5000 metros. Não perfazem os dedos de uma mão as visitas anteriores, com mergulhos do género, desde 1998, ao Gettysburg e ao Ormonde, outro dos picos do Gorringe, a 130 milhas do cabo de São Vicente. Não é fácil dar com os locais exactos dessas agulhas submarinas, pois basta um desvio de quase nada para que o fundo fique fundo demais. Desta vez, a Universidade Lusófona aventurou-se (às portas do Verão) numa expedição no Creoula, da Marinha Portuguesa. Com a coordenação científica de Manuel Pinto de Abreu, da Lusófona, o Gettysburg e o Ormonde estão de novo na mira. Chamaram-lhe LusoExpedição.

Dez cientistas de várias instituições, ajudados por cinco mergulhadores profissionais, pretendem apoiar as barbatanas ali. A ideia é ficarem a conhecer a vida do Gorringe, coisa que, por si só, faz delirar qualquer biólogo. Quanto mais espécies recolherem, ou pelos menos registarem a presença, melhor é para caracterizar mais um banco submarino, locais também importantes para a pesca.

A prova de que a Erylus discophorus também faz do Gorringe a sua casa encontra-se nas mãos de Joana Xavier, literalmente. Madalena Humanes já tinha amostras de exemplares da Galiza ou dos Açores, faltavam-lhe do meio do Atlântico.

Joana Xavier resolveu-lhe o problema, com os exemplares que apanhou no Gettysburg, com Gonçalo Calado. "Existe aqui em quantidades absurdas! Apresenta dimensões extraordinárias, que nunca tinha visto."

Antes de a esquartejarem, debruçam-se sobre os exemplares já dispostos em tabuleiros, onde se colocam os materiais trazidos do fundo que vão para triagem, a cargo de estudantes universitários, para muitos a primeira vez que participaram numa campanha científica. "Esta esponja engloba montanhas de organismos", observa Joana Xavier. Ela e Gonçalo Calado passam depois o resto a Mónica Albuquerque e Inês Tojeira, a seleccionarem tudo o que chega ("estou a tirar o que me vai interessar, os briozoários", explica uma delas, com os olhos pregados na esponja). Mal o Creoula entra pelo Tejo, para atracar na base naval do Alfeite, perto de Lisboa, Madalena Humanes recebe o telefonema prometido. Ainda nesse dia, chegam-lhe às mãos fatias da esponja que veio de uma ilha submersa no Atlântico.


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